No grande dia do Calvário - Primeira Parte - VIII

Há dois mil anos
Romance de Emmanuel


No grande dia do Calvário desde a sua altercação com a esposa, fechara-se Públio Lentulus na mais penosa taciturnidade.

Dolorosas suspeitas lhe vergastavam o coração impulsivo, acerca do procedimento daquela que o destino algemara ao seu espírito, para sempre, no instituto da vida conjugal. Não pudera compreender o disfarce de que Lívia se utilizara para o encontro com o profeta de Nazaré, pois seu temperamento orgulhoso rebelava-se contra aquela atitude da mulher, considerando a sua posição social um penhor da veneração e do respeito de todos e dando guarida, assim, às mais penosas desconfianças, intoxicado pelas calúnias de Fúlvia e Sulpício.

Algum tempo decorrera e, enquanto ele se enclausurava no seu mutismo e na sua melancolia, Lívia abroquelava-se na fé, nas palavras carinhosas e persuasivas do Nazareno. Nunca mais voltara ela a Cafarnaum, com o fim de ouvir as consoladoras prédicas do Messias; mas, por intermédio de Ana, que lá comparecia pontualmente, procurou auxiliar, sempre que possível, os pobres que buscavam a palavra de Jesus, na medida dos seus recursos materiais. Profunda tristeza lhe invadia o coração sensível e generoso, ao observar as atitudes incompreensíveis do companheiro; mas, a verdade é que já não colocava suas esperanças em qualquer realização do orbe terrestre, volvendo as mais ardentes aspirações para aquele reino de Deus, maravilhoso e sublime, onde tudo devia transpirar amor, ventura e paz, no seio farto de soberanas consolações celestes.

Aproximava-se a Páscoa no ano 33. Numerosos amigos de Públio haviam aconselhado a sua volta temporária a Jerusalém, a fim de intensificar os serviços da procura do filhinho, no curso das festividades que concentravam, na época, as maiores multidões da Palestina, estabelecendo possibilidades mais amplas ao reencontro do desaparecido. Peregrinos incontáveis, de todas as regiões da província, dirigiam-se para Jerusalém, a participar dos grandes festejos, oferecendo, simultaneamente, os tributos de sua fé, no suntuoso templo. A nobreza indígena também se fazia notar ali, em tais circunstâncias, através de seus elementos mais representativos. Todos os partidos políticos se arregimentavam para os serviços extraordinários das solenidades que reuniam as maiores massas do judaísmo, encaminhando-se para lá os homens mais importantes do tempo. As autoridades romanas, por sua vez, concentravam-se, igualmente, em Jerusalém, na mesma ocasião, reunindo-se na cidade quase todos os centuriões e legionários, destacados a serviço do Império, nas paragens mais remotas da província.

Públio Lentulus não desdenhou o alvitre e, antes que a cidade se enchesse de romeiros e exploradores, já ali se encontrava com a família, fornecendo instruções aos servos de confiança, conhecedores do pequenino Marcus, de maneira a estabelecer um cordão de investigadores atentos e permanentes, enquanto perdurassem os festejos.

Em Jerusalém, o convencionalismo social não se modificara, notando-se apenas a circunstância de Públio haver dispensado a residência do tio Sálvio, adquirindo uma vila confortável e graciosa em plena rua movimentada, de onde pudesse observar, igualmente, as manifestações populares.

As vésperas da Páscoa chegaram com a volumosa preamar de peregrinos de todas as classes e de todas as localidades provinciais.

Interessante observar-se, naqueles blocos heterogêneos de povo, os hábitos mais dispares entre si.

Caravanas sem conto, revelando os mais esquisitos costumes, atravessavam as portas da cidade, patrulhadas por numerosos soldados pretorianos E enquanto o senador fazia comparações de ordem econômica, social e política, observando as massas de povo que afluíam às ruas movimentadas, vamos encontrar Lívia em palestra íntima com a serva de sua amizade e confiança.

- Sabeis, senhora, que também o Messias chegou ontem à cidade? - exclamava Ana, com um raio de alegria nos grandes olhos.

- Verdade? - perguntou Lívia, surpresa.

- Sim, desde ontem chegou Jesus a Jerusalém, saudado por grandes manifestações populares.

A ressurreição de Lázaro, em Betânia, confirmou suas divinas virtudes de Filho de Deus, entre os homens mais descrentes desta cidade, e acabo de saber que sua chegada foi objeto de imensas alegrias da parte do povo. Todas as janelas se enfeitaram de flores para a sua passagem triunfal, as crianças espalharam palmas verdes e perfumadas no caminho, em homenagem a ele e aos seus discípulos!... Muita gente acompanhou o Mestre desde as margens do lago de Genesaré, seguindo-o até aqui, através de todas as localidades.

Quem me trouxe a notícia foi um conhecido pessoal, portador do tio Simeão, que também veio a Jerusalém, nessa grande caminhada, apesar da sua idade avançada....

- Ana, essa notícia é muito confortadora -disse-lhe a senhora, com bondade - e se eu pudesse iria ouvir a palavra do Mestre, onde quer que fosse; mas, bem sabes as dificuldades para a consecução deste intento.

Entretanto, ficas livre de tuas obrigações e trabalhos, durante a permanência de Jesus em Jerusalém, de modo a bem aproveitares as festas da Páscoa, ouvindo, ao mesmo tempo, as prédicas do Messias, que tanto bem nos fazem ao coração.

E, entregando à criada o indispensável auxílio pecuniário, observava que Ana partia satisfeita em demanda das cercanias do Monte das Oliveiras, onde estacionavam massas compactas de peregrinos, entre os quais se notava a presença do velho Simeão, de Samaria, romeiro desassombrado que não trepidara, apesar da idade avançada, em aderir ao movimento das peregrinações pelos mais escabrosos e longos caminhos.

Em casa de Lentulus não havia tanto interesse pelas grandes festividades do judaísmo.

Um único motivo justificava a presença do senador em Jerusalém, naqueles dias turbulentos: o da busca incessante do filho, que parecia perdido para sempre.

Diariamente ouvia os servos de confiança, após as diligências empreendidas e, de instante a instante, sentia-se mais acabrunhado por acerbas desilusões, considerando a luta inútil naquelas pesquisas exaustivas e infrutíferas.

Na vivenda clara e ajardinada, as horas passavam vagarosas e tristes. Embalde se movimentavam as ruas, patrulhadas por soldados e cheias de criaturas de todos os matizes sociais. O vozerio das ruidosas manifestações populares transpunha aquelas portas quase silenciosas, como ecos apagados de rumores longínquos.

A penosa situação conjugal, em que se colocara, separava o senador da mulher, como se estivessem irremediavelmente distantes um do outro e destruídos os laços sagrados do coração.

Foi a esse retiro de calma aparente que Ana voltou, certa manhã, passados alguns dias, a fim de cientificar a senhora da inesperada prisão do Messias.

Com a simplicidade espontânea e sincera da alma popular, que ela encarnava, a serva humilde historiou, com os mais íntimos pormenores, a cena provocada pela ingratidão de um dos discípulos, em virtude do despeito e da ambição dos sacerdotes e fariseus do templo da grande cidade israelita.

Amargamente compungida em face do acontecimento, Lívia considerou que, se fosse noutro tempo, recorreria imediatamente à proteção política do marido, de modo a evitar ao profeta de Nazaré os ataques das ambições desmesuradas. Agora, porém, reconhecia não lhe ser possível socorrer-se do prestigio do companheiro, em tais circunstâncias. Mesmo assim, procurou aproximar-se dele, por todos os modos, embora improficuamente. De uma sala contígua ao seu gabinete, notou que Públio atendia a numerosas pessoas que o procuravam particularmente, em atitude discreta; e o interessante é que, segundo as suas observações, todos expunham ao senador o mesmo assunto, isto é, a prisão inesperada de Jesus Nazareno - acontecimento que desviara todas as atenções das festividades da Páscoa, tal o interesse despertado pelos feitos do Mestre, em todos os espíritos. Alguns solicitavam a sua intervenção no processo do acusado; outros, da parte dos fariseus ligados aos sacerdotes do Sinédrio, encareciam aos seus olhos o perigo das pregações de Jesus, apresentado por muitos como revolucionário inconsciente, contra os poderes políticos do Império.

Debalde esperou Lívia que o marido lhe concedesse dois minutos de atenção, no compartimento próximo do seu gabinete privado.

Sua ansiedade tocava o apogeu, quando lobrigou a figura de Sulpício Tarquinius, que vinha da parte de Pilatos solicitar ao senador obséquio da sua presença, imediatamente, no palácio do governo provincial, a fim de resolver um caso de consciência.

Públio Lentulus não se fez rogado.

Ponderando os deveres de homem de Estado, concluiu que deveria esquecer quaisquer prevenções da sua vida particular e privada, marchando ao encontro das obrigações que devia ao Império.

Lívia perdeu, então, toda a esperança de implorar-lhe auxílio para o Mestre, naquele dia. Sem saber porque, intensa amargura invadia-lhe o mundo íntimo. E foi com a alma envolta em sombras que elevou ao Pai Celestial as suas preces fervorosas e sinceras, por aquele que seu coração considerava lúcido emissário dos céus, suplicando, a todas as forças do bem, livrassem o Filho de Deus da perseguição e da perfídia dos homens.

Ao chegar à corte provincial romana, naquele dia inesquecível de Jerusalém, Públio Lentulus foi tomado de extraordinária surpresa.

Ondas compactas de povo se adensavam na praça extensa, em gritaria ensurdecedora.

Pilatos recebeu-o com deferência e solicitude, conduzindo-o a um gabinete amplo, onde se reunia pequeno número de patrícios, escolhidos a dedo em Jerusalém. O pretor Sálvio, funcionários de destaque, militares graduados e alguns poucos romanos civis, de nomeada, que passavam eventualmente pela cidade, ali se aglomeravam, convocados pelo governador, que se dirigiu a Públio Lentulus, nestes termos:

- Senador, não sei se tivestes ensejo de conhecer, na Galileia, um homem extraordinário que o povo se habituou a chamar Jesus Nazareno.

Esse homem foi agora preso, em virtude da condenação dos membros do Sinédrio, e a massa popular que o havia recebido, nesta cidade, com palmas e flores, pede agora, nesta praça, o seu imediato julgamento por parte das autoridades provinciais, em confirmação da sentença proferida pelos sacerdotes de Jerusalém.

Eu, francamente, não lhe vejo culpa alguma, senão a de ardente visionário de coisas que não posso ou não sei compreender, surpreendendo-me amargamente o seu penoso estado de pobreza.

Neste comenos, penetraram na sala as duas irmãs, Cláudia e Fúlvia, que tomaram assento nesse conselho íntimo de patrícios.

- Ainda esta noite - continuou Pilatos, apontando para a esposa -,parece que os augúrios dos deuses se manifestaram para a minha orientação, pois Cláudia sonhou que uma voz lhe recomendava que eu não deveria arriscar minha responsabilidade no julgamento desse homem justo.

Resolvi, portanto, agir em consciência, aqui reunindo todos os patrícios e romanos notáveis de Jerusalém, para examinarmos o assunto, de modo que o meu ato não prejudique os interesses do Império, nem colida com o meu ideal de justiça.

Que dizeis, pois, dos meus escrúpulos, na qualidade de representante direto do Senado e do Imperador, entre nós, neste momento?

- Vossa atitude - obtemperou o senador, compenetrado de suas responsabilidades -- revela o máximo critério nas questões administrativas.

E, recordando, no íntimo, os bens que havia recebido do profeta com a cura da filhinha, embora as dúvidas levantadas por seu orgulho e vaidade, continuou:

- Conheci de perto o profeta de Nazaré, em Cafarnaum, onde ninguém o tinha na conta de conspirador ou revolucionário. Suas ações, ali, eram as de um homem superior, caridoso e justo, e jamais tive conhecimento de que sua palavra se erguesse contra qualquer instituto social ou político, do Império. Certamente, alguém o toma aqui como pretendendo a autoridade política da Judeia, cevando-se no seu nome as ambições e o despeito dos sacerdotes do templo. Mas, já que guardais no coração os melhores escrúpulos, porque não enviais o prisioneiro ao julgamento de Ântipas, a quem, com mais propriedade, deve interessar a solução de semelhante assunto? Representando, nestes dias, o governo da Galileia aqui em Jerusalém, acho que ninguém, melhor que Herodes, pode resolver em sã consciência um caso como este, considerando-se a circunstância de que julgará um compatrício seu, já que não vos supondes de posse de todos os elementos para proferir sentença definitiva nesse processo insólito.

A ideia foi unanimemente aceita, sendo o acusado conduzido à presença de Herodes Ântipas, por alguns centuriões, obedecendo-se, rigorosamente, as determinações de Pilatos nesse sentido.

Todavia, no palácio do Tetrarca da Galileia, foi Jesus de Nazaré recebido com profundo sarcasmo.

Apelidado pela gente simples como "Rei dos Judeus" e simbolizando a esperança de certas reivindicações políticas para  numerosos de seus seguidores, entre os quais se incluía o famoso discípulo de Kerioth, o mestre de Nazaré foi tratado pelo príncipe de Tiberíades como vulgar conspirador, humilhado e vencido.

Ântipas, porém, para fazer sentir ao Procurador da Judeia a conta de ridículo em que tomava os seus escrúpulos, mandou que se tratasse o prisioneiro com o máximo de ironia.

Vestiu-lhe uma túnica alva, igual à indumentária dos príncipes do tempo, colocando-lhe nos braços uma cana imunda à guisa de cetro, e coroou-lhe a fronte abatida com uma auréola de venenosos espinhos, devolvendo-o à sanção de Pilatos, no turbilhão de gritarias da populaça exacerbada.

Muitos soldados romanos cercavam o acusado, protegendo-o das investidas da massa furiosa e inconsciente.

Jesus, trajando, por irrisão, a túnica da realeza, coroado de espinhos e empunhando uma cana como símbolo do seu reinado no mundo, deixava transparecer, nos olhos profundos, indefinível melancolia.

Cientificado de que o prisioneiro era devolvido por Ântipas ao seu julgamento, o governador dirigiu-se novamente aos seus conterrâneos, exclamando:

- Meus amigos, não obstante nossos esforços, Herodes apela também para nós outros, a fim de se confirmar a peça condenatória do profeta Nazareno, recambiando-o com a sua situação penosamente agravada perante o povo, porquanto, como suprema autoridade em Tiberíades, tratou o prisioneiro com revoltante sarcasmo, dando-nos a entender o desprezo com que supõe deva ele ser encarado pela nossa justiça e administração.

Tão amarga situação contrista-me bastante, porque o coração me diz que esse homem é um justo; mas, que fazermos em semelhante conjuntura?

Da câmara isolada, onde se reunia o apressado e reduzido conselho de patrícios, podiam observar-se os ecos rumorosos da turba amotinada, em espantosa gritaria.

Um ajudante de ordens do governador, de nome Polibius, homem sensato e honesto, penetrou no recinto, pálido e quase trêmulo, dirigindo se a Pilatos:

- Senhor Governador, a multidão enfurecida ameaça invadir a casa, se não confirmardes a sentença condenatória de Jesus Nazareno, dentro do menor prazo possível...

- Mas, isso é um absurdo - retrucou Pilatos, emocionado. - E, afinal, que diz o profeta, em tais circunstâncias? Sofre tudo sem uma palavra de recriminação e sem um apelo oficial aos tribunais de justiça?

- Senhor - replicou Polibius, igualmente impressionado -, o prisioneiro é extraordinário na serenidade e na resignação. Deixa-se conduzir pelos algozes com a docilidade de um cordeiro e nada reclama, nem mesmo o supremo abandono em que o deixaram quase todos os diletos discípulos da sua doutrina!

Comovido com os seus padecimentos, fui falar-lhe pessoalmente e, inquirindo-o sobre os seus martírios, afirmou que poderia invocar as legiões de seus anjos e pulverizar toda a Jerusalém dentro de um minuto, mas que isso não estava nos desígnios divinos e, sim, a sua humilhação infamante, para que se cumprissem as determinações das Escrituras. Fiz-lhe ver, então, que poderia recorrer à vossa magnanimidade, a fim de se ordenar um processo dentro de nossos dispositivos judiciários, de maneira a comprovar sua inocência e, todavia, recusou semelhante recurso, alegando que prescinde de toda proteção política dos homens, para confiar tão somente numa justiça que diz ser a de seu Pai que está nos céus!

- Homem extraordinário!... - revidou Pilatos, enquanto os presentes o acompanhavam estupefatos.

Polibius - continuou ele -, que poderíamos fazer para evitar-lhe a morte nefanda, nas mãos criminosas da massa inconsciente?

- Senhor, em vista da necessidade de resolução rápida, sugiro a pena dos açoites na praça pública, por ver se assim conseguimos amainar as iras populares, evitando ao prisioneiro a morte ignominiosa nas mãos de celerados sem consciência...

- Mas, os açoites?! - diz Públio Lentulus, admirado, antevendo as torturas do horrível suplício.

- Sim, meu amigo - redarguiu o governador, dirigindo-lhe a palavra com atenção respeitosa -, a ideia de Polibius é bem lembrada. Para evitarmos ao acusado a morte ignominiosa, temos de lançar mão deste recurso. Vivendo na Judeia há quase sete anos, conheço este povo e sei de suas temíveis atitudes, quando as suas paixões se desencadeiam.O suplício foi, então, ordenado, no pressuposto de evitar maiores males.

Diante de todos, foi Jesus açoitado, de maneira impiedosa, aos berros estridentes da multidão amotinada.

Nesse instante doloroso, Públio e alguns romanos se ausentaram por momentos da câmara privada onde se reuniam, a fim de observarem os movimentos instintivos da massa fanática e ignorante. Não parecia que os peregrinos de Jerusalém haviam acorrido à cidade para as comemorações alegres da Páscoa, mas, tão somente, para procederem à condenação do humilde Messias de Nazaré. De quando em quando, fazia se mister o concurso decidido de centuriões desassombrados, que dispersavam certos grupos mais exaltados, a golpes de chanfalho.

O senador fez questão de aproximar-se do supliciado, na suas provações dolorosas e extremas. Aquele rosto enérgico e meigo, em que os seus olhos haviam divisado uma auréola de luz suave e misericordiosa, nas margens do Tiberíades, estava agora banhado de suor sangrento a manar-lhe da fronte dilacerada pelos espinhos perfurantes, misturando-se de lágrimas dolorosas; seus delicados traços fisionômicos pareciam invadidos de palidez angustiada e indescritível; os cabelos caíam-lhe na mesma disposição encantadora sobre os ombros seminus e, todavia, estavam agora desalinhados pela imposição da coroa ignominiosa; o corpo vacilava, trêmulo, a cada vergastada mais forte, mas o olhar profundo saturava-se da mesma beleza inexprimível e misteriosa, revelando amargurada e indefinível melancolia.

Por um momento, seus olhos encontraram os do senador, que baixou a fronte, tocado pela imorredoura impressão daquela sobre humana majestade.

Públio Lentulus voltou intimamente compungido ao interior do palácio, onde, daí a poucos minutos, retornava Polibius, cientificando o governador de que a pena do açoite não havia saciado, infelizmente, as iras da população enfurecida, que reclamava a crucificação do condenado.

Penosamente surpreendido, exclamou o senador, dirigindo-se a Pilatos, com intimidade:

- Não tendes, porventura, algum prisioneiro com processo consumado, que possa substituir o profeta em tão horrorosas penas? As massas possuem alma caprichosa e versátil e é bem possível que a de hoje se satisfaça com a crucificação de algum criminoso, em lugar desse homem, que pode ser um mago ou visionário, mas é um coração caridoso e justo.

O governador da Judeia concentrou-se por momentos, recorrendo à memória, com o fim de encontrar a desejada solução.

Lembrou-se então de Barrabás, personalidade temível, que se encontrava no cárcere aguardando a última pena, conhecido e odiado de todos pelo seu comprovado espírito de perversidade, respondendo afinal:

- Muito bem!... Temos aqui um celerado, no cárcere, para alívio de todos, e que poderia, com efeito, substituir o profeta na morte infamante!...

E mandando fazer o possível silêncio, de uma das eminências do edifício, ordenou que o povo escolhesse entre o bandido e Jesus.

Mas, com grande surpresa de todos os presentes, a multidão bradava com sinistro alarido, numa torrente de impropérios:

- Jesus!... Jesus!... Absolvemos Barrabás!... Condenamos a Jesus!...Crucificai-o!... Crucificai-o!...

Todos os romanos se aproximaram das janelas, observando a inconsciência da massa criminosa, no ímpeto de seus instintos desencadeados.

- Que fazer diante de tal quadro? - perguntou Pilatos, emocionado, ao senador que o ouvia atentamente.

- Meu amigo - respondeu Públio, com energia -, se a decisão dependesse tão somente de mim, fundamentá-la-ia em nossos códigos judiciários, cuja evolução não comporta mais uma condenação tão sumária como esta, e mandava dispersar a multidão inconsciente à pata de cavalo; mas, considero que as minhas atribuições transitórias, junto ao vosso governo, não me outorgam direito a tais desmandos e, além disso, tendes aqui uma experiência de sete anos consecutivos.

De minha parte, suponho que tudo foi feito para que as decisões não fossem precipitadas.

Antes de tudo, o prisioneiro foi enviado ao julgamento de Ântipas, que complicou a situação, diante da populaça irresponsável, dentro das suas infelizes noções da tarefa de um governo, deixando-vos a responsabilidade da última palavra sobre o assunto; em seguida, determinastes o suplício do açoite para satisfazer ao povo amotinado, e, agora, acabais de indicar outro criminoso para a crucificação, em lugar do acusado. Tudo inutilmente.

Como homem, estou contra este povo inconsciente e infeliz e tudo faria por salvar o inocente; mas, como romano, acho que uma província, como esta, não passa de uma unidade econômica do Império, não nos competindo, a nós outros, o direito de interferência nos seus grandes problemas morais e presumindo, desse modo, que a responsabilidade desta morte nefanda deve caber agora, exclusivamente, a essa turba ignorante e desesperada, e aos sacerdotes ambiciosos e egoístas que a dirigem.

Pilatos enterrou a fronte nas mãos, como a refletir maduramente naquelas ponderações; mas, antes que pudesse externar sua opinião, eis que Polibius aparece aflito, exclamando em atitude discreta:

- Senhor governador, é preciso apressar vossa decisão. Espíritos maldizentes começam a duvidar da vossa fidelidade aos poderes de César, compelidos pela intriga dos sacerdotes do templo, colocando a vossa dignidade em terreno equívoco para todos... Além disso, a populaça tenta invadir a casa, tornando-se necessário assumirdes atitude decisiva, sem perda de um minuto.

Pilatos ficou rubro de cólera, diante de semelhantes injunções, exclamando irritado, como se estivesse sob o jugo do mais singular dos determinismos:

- Está bem! Lavarei as mãos deste ignominioso delito! O povo de Jerusalém será satisfeito...

E, procedendo a esse ato que o celebrizaria para sempre, dirigiu algumas palavras ao condenado, mandando, em seguida, recolhê-lo a uma cela, onde pudesse permanecer alguns minutos, sem as grosseiras investidas da turba impetuosa, antes que a multidão o conduzisse ao Gólgota, que, na linguagem usual, deverá ser traduzido por Lugar da Caveira.

Um sol abrasador tornara sufocante e insuportável a atmosfera.

Saciada, afinal, a fúria da multidão nos seus desvairamentos infelizes, numerosos soldados seguiram o prisioneiro, que demandava o monte da crucificação, a passos vacilantes sob o madeiro da ignomínia, que a justiça da época destinava aos bandidos e aos ladrões.

Até o momento de sua saída sob a cruz, ninguém se interessara por ele, junto à autoridade ([o governador da Judeia.

Depreendia daí o senador que, quantos seguiam o Mestre de Nazaré nas margens do lago, em Cafarnaum, o haviam abandonado inteiramente.

De uma das janelas do palácio, considerou, penalizado, o desprezo infligido àquele homem que, um dia, o dominara com a força magnética da sua personalidade incompreensível, observando a ondulação da turba enfurecida, ao sair o inesquecível cortejo.

Ao lado do Mestre não se via mais a carinhosa assistência dos discípulos e seus numerosos seguidores. Apenas algumas mulheres - entre as quais se destacava o vulto impressionante e agoniado de sua mãe - o amparavam afetuosamente, no doloroso e derradeiro transe.

Aos poucos, a praça extensa aquietou-se ao calor sufocante da tarde que se avizinhava.

A distância, ouvia-se ainda a vozearia da plebe, aliada ao relinchar dos cavalos e ao tinir das armaduras.

Impressionados com o espetáculo que, aliás, não era incomum na Palestina, reuniram-se os romanos em uma das salas amplas do palácio governamental, em animada palestra, comentando os instintos e paixões ferozes da plebe enfurecida.

Daí a minutos, Cláudia mandava servir doces, vinhos e frutas, e, enquanto a conversação timbrava os problemas da província e as intrigas da corte de Tibério, mal imaginava aquele punhado de criaturas que, na cruz grosseira e humilde do Gólgota, ia acender-se uma gloriosa luz para todos os séculos terrestres.

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